"A saga da Constituição Europeia"
Etiquetas: Europa, Socialismopor João César das Neves
A Europa é um grande sucesso político-social. Nascida dos horrores da segunda guerra mundial, o pior conflito de sempre, conseguiu rapidamente recuperar dos escombros, que unificaram as vítimas, e afirmar-se como uma potência central dos nossos dias. Foi no meio do desastre que surgiu a solidariedade e começou o caminho.
Hoje esse caminho está em perigo precisamente por causa do sucesso anterior. A complacência e arrogância dos líderes, que já não se lembram dos escombros e cujos êxitos convenceram da infalibilidade, estão a pôr em risco os avanços alcançados.
1. O sucesso da Europa
A aventura comunitária é uma excepção histórica. Nunca os povos da Europa foram unidos, a não ser à força. Além disso, nunca existiu um exemplo histórico, aqui ou em qualquer lugar, em que países independente partilhassem voluntariamente a sua soberania na busca de uma via comum.
O instrumento utilizado pelos pais da Europa para lançar esse projecto foi a economia. Perante a miséria da guerra, a abertura de fronteiras e a concertação de políticas produtivas levou a um rápido crescimento. O resultado foi excelente. A Comunidade Económica Europeia constituiu um grande sucesso dos últimos 50 anos e criou uma dinâmica extraordinária.
A prova mais acabada deste facto é que todos os povos do mundo o querem copiar, uns aderindo pessoalmente à União, que já tem mais do quádruplo dos membros iniciais, outros criando os seus clubes nacionais. Deve dizer-se, porém, que nenhuma dessas tentativas externas conseguiu até hoje reproduzir o êxito da Europa. A União Europeia continua a ser o único caso de cooperação real da História. Mas a admiração que provoca mostra a sua influência.
Ultimamente, porém, esse sucesso gerou ambições perigosas. Cada vez mais a Europa está a enveredar por novos campos, onde o acordo é muito menor que nos temas económicos. Para o Leste recém-entrado, a União continua a ser o paraíso de riqueza e a solução dos seus problemas. Neles se vive uma recordação do que foi o encanto inicial da UE. Entretanto os velhos países-membros estão perdidos. Sentem-se ricos, o desemprego mancha a bandeira social e sofrem de uma grave crise civilizacional. Assim, por debaixo do sucesso, está cada vez mais a ver-se a presença dos três níveis de problemas europeus, todos ligados a dificuldades na identidade comum.
2. O drama da Europa
O primeiro é uma acentuada decadência populacional. A taxa média de fertilidade na União Monetária caiu para menos de 1,5 filhos por mulher, muito abaixo do nível de reposição das gerações. A taxa de casamentos é quase metade da de 1970, enquanto a de divórcios subiu para mais do triplo. Estes valores referem-se, não a europeus, mas aos residentes na Europa. Se fossem retirados os imigrantes, que são quem mais casa e mais filhos tem, seriam muito piores.
Quais as consequências desta catástrofe demográfica? Naturalmente, a falência da segurança social, envelhecimento da população, dificuldades na integração dos imigrantes, perda de dinamismo face às outras regiões do mundo que, em boa parte, causa o desemprego e os problemas na produtividade. A decadência familiar também motiva muito do crime, droga, depressão, suicídio.
Quais as causas desta calamidade geracional? Evidentemente, uma falta de atenção, e até franca hostilidade, face à família. A família é precisamente o elemento central na atitude dos EUA, do mundo árabe e, em geral, de todo o mundo. Todo o mundo menos a Europa, onde quem defender a «família tradicional» e o casamento é motivo de ridículo e acusado de tonto e reaccionário. Porque os temas da moda, os sinais da modernidade são o aborto, eutanásia, homossexualidade e divórcio.
Isto leva-nos ao segundo problema, a desorientação cultural. A cultura europeia é altamente fragmentada. Depois do «Renascimento», que repudiou a sua identidade em nome de um mito de regresso de velhas matrizes, e da «Reforma», um violentíssimo confronto de valores fundamentais, caiu-se na recusa de ambos os campos em confronto pelo «Iluminismo», também ele um novo renascimento. A cultura europeia é, desde sempre, aquela que mais se repudiou a si mesma. Não admira que não encontre hoje uma identidade.
Finalmente, num tempo paradoxal onde se vive a globalização da economia e do terrorismo, a Europa é a campeã da ambiguidade diplomática. Aliada dos EUA, é também a sua principal crítica. Próximo das piores zonas de conflito do mundo, não sabe bem quem apoiar.
Velha, rica e decadente, vive no seu interior os dramas que dividem o mundo. Não é preciso a Turquia entrar, para a Europa ter países muçulmanos. A França e o Reino Unido já o são. Os que para cá vêm viver trazem os seus valores e complicam cada vez mais o mosaico. A Europa não consegue formular os tão citados «valores europeus», quanto mais garantir que sejam seguidos.
Os temas da moda europeia parecem-se perigosamente com os sinais de decadência civilizacional. Foi assim na queda do Império Romano, onde também os tradicionais valores familiares pareciam tolices obsoletas e maçadoras, pois o que era excitante e divertido era o adultério e o deboche, numa sociedade que se abandonava ao hedonismo. Também então os aliados mudavam todos os meses
3. O processo da Constituição
Por todas estas razões a Europa ainda não conseguiu saber muito bem aquilo que é. Correndo atrás de si mesma, foge continuamente sem parar de evoluir, crescer, mudar, transformar-se. A quantidade de tratados, actos, declarações que a dizem definir e regular é impressionante. Isto poderia ser um sinal de dinamismo e evolução. De facto revela-se uma fraqueza e confusão. O projecto europeu tem imensas potencialidades que, infelizmente, são em grande medida eliminadas pela péssima liderança política que o orienta.
A 7 de Fevereiro de 1992 foi assinado com solenidade em Maastricht o «Tratado da União Europeia» que, entrando em vigor em 1 de Novembro de 1993 criou a partir da antiga CEE a nova e ambiciosa entidade do seu título. A Europa era, ao menos no nome, já uma União.
Mas, ainda a tinta não estava bem seca e já se começava a preparar um novo acordo, porque o próprio Tratado dizia que era preciso rever-se a si mesmo. Esta revisão viria a ser o Tratado de Amsterdão, assinado a 2 de Outubro de 1997 e vigorando desde 1 de Maio de 1999.
Podia-se pensar que com estes dois textos pomposos as coisas estavam seguras, mas elas foram apenas o pretexto para um terceiro tratado em menos de dez anos, o Tratado de Nice, que foi assinado em 26 de Fevereiro de 2001 e entrou em vigor a 1 de Fevereiro de 2003. Este estabelecia as condições para a União funcionar com o enorme alargamento que se viria a verificar a 1 de Maio de 2004.
Só que este último tratado foi ainda menos «definitivo» que qualquer dos anteriores, porque se admitiu, antes mesmo que fosse aceite, que apenas abria o caminho para uma grande reforma futura. Apensa ao seu texto havia logo uma «Declaração respeitante ao futuro da União» que definia já os passos de reforma que se seguiriam.
Assim, quando ainda o Tratado de Nice não estava operacional, reunia pela primeira vez a 22 de Fevereiro de 2002 a Convenção Europeia com o propósito de apresentar propostas para a reforma institucional da União. Encerrou os seus trabalhos em apoteose a 8 de Julho de 2003 apresentando um projecto final de documento. Foi assim que o «Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa» foi assinado em 29 de Outubro de 2004 por todos os líderes da União.
Surpreendentemente, para quem seguiu esta história atribulada, a Constituição pretendia ser definitiva. Nos últimos anos as reformas seguiam-se a ritmo alucinante mas, desta vez, dizia-se ter finalmente chegado a um acordo que definia o funcionamento final da União. Os líderes começavam a acreditar na sua própria retórica. Seguia-se o processo de ratificação nacional para que o texto entrasse em vigor antes de 1 de Novembro de 2006, como estava estabelecido.
Toda a gente sabia que essa ratificação iria ser dificil, mas não se esperava o fim inglório a que estava votada. A 29 de Maio de 2005 o referendo francês disse «não» à Constituição proposta com 55% de votos expressos e uma abstenção de 31%. Logo no dia 1 de Junho seguinte a Holanda rejeitava o mesmo texto por 61,5% e uma abstenção de 36,7%. Com a recusa destes dois membros fundadores da CEE, a Constituição morreu nesse Verão.
4. A origem do fiasco
Porque razão isto aconteceu? A maior parte dos analistas apontou pequenos promenores e contratempos, procurando esconder a razão de fundo.
A causa imediata da Constituição é, como se sabe, o alargamento de 2004, com a entrada de 10 países do leste europeu. Este foi o maior alargamento em termos de população, acrescentado 76 milhões de pessoas, 20% do total (embora percentualmente o alargamente de 1972 tivesse sido maior). Foi também o maior alargamento em termos de produto, quase 5% do total (embora o salto percentual de 1972 e de 1986 fossem maiores). É também a maior queda de todas no nível médio de vida da Europa (que desceu em todos os alargamentos, excepto em 1994). O significado da mudança dificilmente pode ser empolado.
Além disso, este alargamento é a consagração do fim da «guerra fria», com a entrada de países de Leste e até da ex URSS. Terminava finalmente a estrutura pós-1945. Mas isso faz lembrar duas coisas: primeiro, que a União Europeia é, também ela, um produto da «guerra fria», e o fim dela tem criado graves tensões em todas as instituições mundiais dessa época (ONU, NATO, etc). Segundo, que ainda não está claro o novo quadro no mundo pós-guerra fria. O período de sonho do «fim da História» e do consenso mundial acabou a 11 de Setembro de 2001. A actual situação de um inimigo invisível e os EUA a criarem guerras quentes para o combater não é sustentável.
Por tudo isto a Europa confrontava-se com problemas graves. Gerir uma União a 25, e depois 27 países soberanos, muito diferentes num mundo em grande transformação nunca seria simples. Mas, em vez de abordar esse problema prático, decidiu criar um problema muito maior. Conceber uma Convenção, onde os participantes se sentiam como os gregos antigos ou os constituintes americanos, para criar um texto definitivo e sublime, tornava a Europa o próprio problema em análise.
Uma Constituição significa a definição de valores partihados. Mas a Europa dos 27 num mundo turbulento quase não tem valores partilhados. De facto, a Europa vive uma terrível crise de identidade. As Constituições fazem-se para afirmar uma personalidade conquistada. Quando ainda se aspira a uma identidade inexistente, o instrumento acaba por funcionar mal. A União Europeia está a tentar fingir que tem uma identidade que não inventou.
Os nossos líderes, com este projecto, deixavam se olhar para as dificuldades para se tornarem eles mesmos na dificuldade.
5. A emenda do soneto
Como era inevitável, o projecto de Constituição constituiu um exercício de compromisso entre posições incompatíveis, que vão desde os «federalistas» aos «eurocépticos». Isso quer dizer que o texto se tornou incompreensível e depende da interpretação. Afinal, foi sempre assim desde o princípio. No papel, a Europa nunca funciona, devido à complexidade das posições. Mas sempre houve a boa vontade e o empenhamento para haver compromissos e se avançar.
Aqui surge a outra novidade, porque essa antiga boa vontade parece começar a escassear, ao mesmo tempo que a ambição e arrogância dos burocratas aumenta. O interesse nacional sobrepõe-se ao empenho comunitário. Aliás, com 27 países outra coisa não seria de esperar.
Mas uma tolice nunca vem só. Pensando repetir as antigas negociações que foram empurrando a integração ao longo de décadas, os líderes da União Europeia planeiam agora um enorme embuste: a aprovação da famigerada Constituição, a mesma que foi chumbada há dois anos. Para isso limita-se a fazer cedências de cosmética e, sobretudo, a conceber uma linha de argumentação que evite os referendos nacionais. Trata-se de uma aldrabice tão grande e evidente que é difícil acreditar que alguém no seu juízo a tente nesta era da informação.
Será pedido às populações europeias nos próximos meses que acreditem em várias contradições. Primeiro que este tratado é novo e diferente do anterior, mas faz exactamente o mesmo. Depois que se trata de um texto curto e reduzido, embora demasiado grande para ser lido. Além disso que é indispensável e decisivo na vida da Comunidade, exigindo-se a sua aprovação rápida, mas tão ligeiro e pouco importante que se torna inútil a consulta popular. Não será preciso perguntar, visto toda a gente o apoiar, embora quando se perguntou a resposta fosse negativa. Finalmente todos devem acreditar que ele consagra os princípios de uma Europa democrática, governada pela vontade popular e respeitadora das diversidades nacionais, embora este mesmo processo seja prova do oposto.
Quem apontar estas contradições é acusado de anti-europeísta, mas são elas próprias os argumentos preciosos para os verdadeiros anti-europeístas, que aí vêem a perversidade da integração. Deste modo os líderes europeus transformam-se nos maiores inimigos daquilo mesmo que pretendem promover. A Europa abandona os seus princípios fundamentais precisamente no momento em que os proclama.
Por coincidência, quem dirigirá a fase final do processo é precisamente o país cuja liderança está ligada a dois dos maiores embustes europeus. No primeiro semestre de 1992 a presidência portuguesa fez assinar a primeira reforma da Política Agrícola Comum, a qual é a principal candidata ao título de maior roubo, desperdício e distorção da CEE. A reforma de 1992 melhorou aspectos pontuais mas contribuiu para perpetuar a infâmia. Depois, no primeiro semestre de 2000, cá foi assinada a mais patética declaração de incapacidade e menoridade da Europa. A «Estratégia de Lisboa» marcou as linhas de orientação da década, a que ninguém ligou, e manifestou à evidência as nossas fraquezas e dependências. Agora, a terceira presidência lusa tem de conduzir a suprema impostura constitucional.
Um disparate deste calibre só é possível em circunstâncias bizarras. E essas não faltam à União. O ponto de partida é a supina desconfiança mútua entre dirigentes e cidadãos que se foi desenvolvendo precisamente ao longo deste processo constitucional. Os líderes e funcionários da Comunidade, que têm puxado este processo de integração desde o início, desprezam as populações como ignorantes, chauvinistas e antiquadas. Pelo seu lado, os eleitores há muito deixaram de entender este estranho aglomerado de 27 países, preso numa incompreensível teia de regulamentos. Está completo o cenário para um desastre democrático.
O desastre aconteceu: os burocratas conceberam um texto pomposo e absurdo, que os cidadãos chumbaram e agora os burocratas, revendo-o, insistem que o melhor é o chumbado. A União tem uma longa experiência destas piruetas legais. Há documentos que vigoram numa realidade oposta ao articulado (como o Pacto de Estabilidade), proclamações bombásticas sem substância (Estratégia de Lisboa) e até já foram aprovados textos depois de recusados em referendo (o Tratado de Maastricht na Dinamarca). A construção europeia constitui um incrível amontoado de negociações tortuosas, eufemismos enganadores, cedências comprometedoras, mas até hoje pudicamente encobertas. Desta vez o nervosismo fez perder a vergonha.
A UE tem 27 países, 23 línguas oficiais, 3 alfabetos e fronteiras da Rússia ao Brasil (na Guiana Francesa). Esta Babel de povos só funcionaria na humildade e pragmatismo do equilíbrio. Os líderes insistem na arrogância do sonho unitário, enquanto os problemas reais – decadência demográfica, desorientação cultural, ambiguidade diplomática – se agravam no mundo global. Depois lamentam a perda de credibilidade das instituições comunitárias.
Fonte: Alameda Digital
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